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Mário Boaventura Souto Maior




Fátima Quintas

"A las cinco de la tarde,/ Eram cinco da tarde em ponto./ Um menino trouxe o branco lençol/ a las cinco de la tarde./ Uma esporta de cal já prevenida/ a las cinco de la tarde./ O mais era morte e somente morte/ a las cinco de la tarde./ Ai que terríveis cinco horas da tarde!/ Eram cinco horas em todos os relógios!/ Eram cinco horas da tarde em sombra." No lusco-fusco de um domingo carente de sussurros de sereia, sob o abrigo de um crepúsculo irizado, a las cinco de la tarde, encantou-se Mário Boaventura Souto Maior. Seu nome imprimiu-lhe caráter. Quase um sacramento que não se desfaz na eternidade: Boaventura. Jeito meigo, dócil, com vontade, por vezes, como diria Jorge Luís Borges, de tornar-se invisível, chegava à Fundação Joaquim Nabuco segurando uma pesada pasta, cheia de papéis, e uma simples sacola, de plástico, repleta de venturas. Com um bom-dia radioso, iniciava a cerimônia do seu ofício. Sem permitir que a velocidade do calendário lhe usurpasse os sonhos, sentava-se ao birô crivado pela volúpia de escrever. Escutava o chilrear dos passarinhos, olhava o céu, as nuvens, os ícones seráficos e, com a mão embaixo do queixo, contava histórias do arco da velha.
 

Os rituais comandavam a celebração do seu dia. Era um homem de rotina. E de cotidianas liturgias. Acolhia-se felinamente no seu oráculo inspirador. Não gostava de viajar, maravilhava-se com a sua aldeia, a lembrar Tolstói e, igualmente, a evocar Kant, verbalizava que seus livros viajariam por ele. Pesquisava com obstinação, porém estabelecia interregnos periódicos, pausas para a meditação, uma maneira muito sua de realimentar-se espiritualmente. A leveza acompanhou todos os seus passos. Dele jorrava uma paz interior que se traduzia na ternura e no afago do convívio diário. Em gabinetes contíguos, trabalhamos, lado a lado. Priorizava as coisas simples da vida: a flor que brotava na varanda, o vaso de barro germinando sementes delicadas, os retratos da família na parede, o zelo pela gata Patty.
 

Ao meio-dia, almoçava, ou melhor, beliscava. Comia pouco, gostava de frutas, e só. Após a pequena refeição, descansava uma hora ouvindo música clássica. Amante fervoroso da tradição, alumbrava-se intensamente com a tecnologia. Um contraponto que o caracterizava na sua dimensão visionária.
 

Nascido em Bom Jardim, formado em Direito, trilhou várias estradas, concentrando no folclore a sua paixão maior. Outras o acompanharam na construção da torre da felicidade. Amou uma única mulher, Carmem, e por ela foi amado.
 

A sacola de plástico, grande, volumosa, falava da sua pureza e ingenuidade de criança. Ali guardava as delícias das lembranças interioranas: o doce caseiro, algumas acerolas e jabuticabas, o insubstituível chocolate. E o prazer máximo, por mim também partilhado, acontecia na degustação da água de coco – reservada em uma garrafa térmica – ao sabor e ao saber de uma gostosa conversa fiada. Não se cansava de revolver as gavetas bolorentas dos antigos e vetustos porões. As crendices, as tradições, a verdade do povo, narrava com a calma dos mansos e a serenidade dos sábios. Memória irretocável, descrições minuciosas, redesenhava os tempos, os passados queridos, o presente companheiro, os futuros possíveis.
 

As emoções afloram. Não quero esquecer nada, principalmente a candura que me fez elegê-lo um outro pai. O nome: a marca primeira que já autenticava essência e substância ao seu lastro ontológico. E a caminhada da boaventurança transbordou na plenitude do Maior.
 

Que mais poderei dizer eu desse homem que me aconselhou na vida profissional e afetiva? Ao transmudar-se em pássaro intangível, morre parte de mim. Sou náufraga, sobrevivente largada em mares tempestuosos a aguardar um salva-vidas que me indique o destino a seguir. Não esmorecerei, todavia. O seu exemplo de força e humildade simbolizará a minha estrela-guia. Adeus, Mário Boaventura Souto Maior
 

Jornal do Commercio
04.12.2001

 

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