Lêda Rivas
Pareceu brincadeira de mau gosto, como aquelas que o folclorista costumava explorar, ele que era expert em temas populares de morte e vida: "Morreu Mário Souto Maior". Mas... morreu como? Assim, sem mais nem menos, numa tarde ensolarada de Domingo? Não seria mais uma de suas travessuras?
Na verdade, Mário vinha doente, há algum tempo. A família e os amigos temiam pela sua saúde, fragilizada, a cada dia, esvaecendo-se num desafio gritante a todos os esforços médicos, a toda uma moderna parnafernália (como ele diria) de máquinas e remédios. Mas, todos tinham certeza: ele sobreviveria aos males e voltaria, logo, para o seu cotidiano movimentado de pai de família exemplar, de pesquisador incansável e profícuo. O coração-logo o coração, que era tão grande e terno – traiu-o, sem-cerimônia, inclemente. Devia ser proibido morrer em tardes ensolaradas de Domingo. Por isso, ninguém acreditou que o Guru se tivesse ido.
Guru. Era assim que o chamavam as equipes do Departamento de Pesquisa e do Caderno Viver do Diário de Pernambuco, que dele sempre se socorriam, quando o tema a discutir era o folclore. O homem sabia tudo. E atendia, com uma paciência oriental e uma simplicidade encantadora, aqueles repórteres curiosos, insistentes, às vezes, chatos. Nada o fazia perder o bom humor, mesmo quando tinha de responder a perguntas indiscretas, como a razão da perda da visão esquerda. Um colega de farda lhe atingira, sem querer, com uma baioneta, um olho, na juventude, quando fazia Tiro de Guerra, e desde então, ele ficara "colega de Camões, mesmo sem andar por mares nunca dantes navegados..." Era assim que Mário explicava o acidente.
Trabalhar com um olho só nunca foi problema. Foi desafio vencido numa carreira de mais de 40 anos, que lhe rendeu um impressionante bibliografia de quase 70 títulos. Pesquisador compulsivo, escrevia, diariamente, enfurnado numa pequena sala, sem luxos, do Instituto de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco, onde também recebia estudantes, colegas, professores de todo o Brasil. Não havia um mês em que Souto Maior não apresentasse uma contribuição nova, fosse um livro, em plaquete, em micromonografia, em ensaio. Era pesquisador de caneta esferográfica e papel, a letra mais parecendo um bordado; depois, passou para uma máquina Remington – trocada , graças à insistência da família, por uma IBM elétrica- e, mais recentemente, chegou ao computador. Entrou no mundo cibernético por imposição do filho Jan, que lhe construiu uma das mais belas páginas da Internet no Brasil.
Vale a pena consultá-la, ali, o navegador vai saciar sua curiosidade quanto à cultura popular regional e saber mais sobre esse homem que dedicou a vida inteira a perseguir a alma nordestina. O dono de uma bibliografia tào rica nào ganhou dinheiro com seu trabalho. Era pesquisador de recursos minguados, tirando do próprio bolso o pagamento de muitas das suas edições, sacrificando o bem-estar para ver um novo livro no prelo. Um de seus últimos títulos, por exemplo, foi custeado com um resto de poupança e a antecipação do l3º salário. Seu esforço, todavia, foi reconhecido pela Fundação Joaquim Nabuco, que publicou boa parte de sua produção, e pelos amigos, que, vez por outra, mobilizavam-se em cotas para bancar um livro novo.
Era pesquisador de campo, embrenhado no mundo rural; pesquisador urbano, encantado com a sabedoria que vinha das ruas. Investigador dos sabores, dos cheiros, das cores, dos ritmos, dos falares, das crendices da sua gente, vigilante à mínima descaracterização desses valores. Fez-se doutor nesses estudos. Doutor de alpargatas e roupa singela, sem becas nem anelões brilhantes. Sem teses de pós-graduação, sem bolsas no Exterior.Sem os badulaques do falso academicismo. Doutor que não escrevia para cegar os leitores, mas para tornar-se inteligível (mesmo a certos doutores), universal. Foi, exatamente, para se fazer entender por todos que ele escreveu tanto para crianças. Era, ele mesmo, uma criança. Tinha o olhar honesto, o sorriso limpo das crianças. Agradavam-lhe as anedotas inocentes, as traquinagens ingênuas, os trocadilhos infantis que, vindo daquele homem comprido, magrinho, "mas parecendo uma vara de bambu" "soavam perfeitamente normais. Tudo, para Souto Maior, era motivo de brincadeira.. Por isso, não fui ao velório nem ao sepultamento. É que tenho a impressão que o Guru- travesso como era – está apenas se fingindo de morto.
Jornal do Commercio
29.11.2001