Fernando Antônio Gonçalves
Encontro o João Silvino da Conceição pra lá de jururu, choramingando no consultório do Clodoaldo Sampaio, um dentista muito arretado que não desmerece seu passado de bom sertanejo. Sabedor da admiração do João pelo folclorista Mário Souto Maior, recentemente tornado à Casa do Pai, percebi a razão de tamanha tristeza. E antes de abrir a boca, o João foi me contando o ocorrido. E mais disse:
"Você sabe, amigo, que eu devo muitíssimo ao Mário Souto Maior, um dos maiores pesquisadores da alma brasileira. Reconheço nele um quixote autêntico na preservação do que há de mais legítimo no folclore nacional. Sua compleição franzina, aparentemente descansada, escondia uma mente determinada em continuar pelejando até quando Deus o convocasse.
Jamais esquecerei aquele seu jeitão de deixar a gente mais perto da Criação, feliz como uma criança. Sem resvalar para o chulo ou o grosseiro, Mário sabia escrever e contar seus ‘causos’ de um modo tal que mesclava a autenticidade do ‘acontecido’ com um modo todo seu de nunca escandalizar, nem que o tema fosse sobre palavrão cabeludo.
Uma vez eu li num sei onde: ‘feliz do homem que torpedeia hipócritas, falsos moralistas, bajuladores e trolhas, afugentando maus olhados, sempre em paz com o seu interior de profunda simplicidade, as simploriedades passando ao largo, sem qualquer bem-aventurança’. Eu creio que mais feliz ainda é quem soube privar, que nem eu, da amizade de um talento como o Mário, raríssimo hoje em dia, elegendo-o guru maior do bom humor que carrego, apesar dos aperreios e limitações de uma vida brasileira muito da severina.
Li, de cabo a rabo, todos os livros do Mário Souto Maior. Recordo-me até do seu último esboço, um projeto editorial chamado Um Menino Chamado Fernando Figueira, quase pronto para ir ao forno redacional, faltando apenas os derradeiros detalhes.
A gente vai ficar com uma saudade danada daquele sorriso quase encabulado que ele tinha. Mas o Mário nunca desaparecerá da mente dos seus familiares, amigos e leitores".
Subscrevendo integralmente a carta do João, rendo também minhas homenagens ao querido amigo Mário Souto Maior, um talentoso fotógrafo da nossa cultura popular. Seus livros Nomes Próprios Pouco Comuns, Dicionário do Palavrão e Dicionário Folclórico da Cachaça, entre tantos outros, subsidiarão ainda inúmeras pesquisas folclóricas, que necessitarão de trilhas seguras e honestas, distanciadas dos embusteiros e vivaldinos que apenas fingem, sem raízes de espécie alguma.
Como freudiano e firmemente hétero, recomendo, além dos livros acima, um que quase me fez urinar nas calças em pleno vôo para Aracaju, certa feita: A Geografia Popular do Pau Através da Língua Portuguesa. Para quem muito preserva o seu, são trezentas e cincoenta expressões analisadas, sem obscenizar de jeito maneira. Um meticuloso ensaio onde o Mário demonstra como o pau contribuiu para as manifestações do nosso brasileiríssimo dia-a-dia, ainda não de todo tragado pelos importados primeiromundistas. Através do livro, tomei ciência que souto, em Portugal, é bosque espesso. E o Mário Souto Maior, folclorista popular de primeira linha, nunca desejou mudar-de-pau-prá-cacete, ficando sempre no bosque dele, convencido que nem-todo-pau-dá-esteio.
Não desejando deitar-os-pauzinhos-fora, esta crônica, com a devida licença do Ivanildo Sampaio, é uma singela demonstração do meu querer bem a um intelectual que jamais quis ser um dois-de-paus, em tempo algum desejando disputar-pau-a-pau com quem quer que fosse.
Um nordestino muito brasileiro, o Mário Souto Maior!
Jornal do Commercio
29.11.2001