Do livro Folclore etc. & Tal
Velho burgo várias vezes secular, o Recife - cidade cruel para uns e mãe carinhosa para tantos outros - tem seu coração safenado por diversas pontes que atravessam seus rios, artérias que já foram usadas como caminhos do açúcar e da fuga de escravos, coração muito sofrido por sua participação em tudo quanto foi luta na conquista da Liberdade.
Toda ela construída em solo embebido pelo sangue de seus heróis, a cidade do Recife escreveu, através de seus sonhos, anseios e decisões de sua gente - índios, negros e portugueses - as páginas mais bonitas de nossa História, desde a invasão dos holandeses às lutas até hoje travadas pela conquista, de nossa independência.
0 Recife é, assim, graça, tradição, com seu passado heróico, suas mulheres vestidas de beleza, seus cajus, seus coqueiros, suas mangas, suas praias, seu sol, seus sapotis.
Com tanta beleza de mãos dadas a um passado tão dinâmico, com seus índios, seus portugueses e seus africanos miscigenados no 'amor, na alegria e na dor, com suas ruas misteriosamente estreitas, com suas igrejas enfeitando de fé a vida dos que têm a honra e a alegria de ser sua população, a cidade do Recife, ao completar quatrocentos e cinqüenta anos de idade já tem, também, seu espírito, suas raízes fincadas num passado glorioso, sua tradição, seu folclore.
Aqui se aclimataram todas as manifestações folclóricas trazidas pelos colonizadores portugueses e pelos escravos africanos, juntadas às dos índios, donos do lugar. Assim é que ainda hoje continuam em evidência o pastoril, integrando o cicio das festas natalinas do Nordeste. As doces canções de ninar, fazendo adormecer, no regaço de suas mães, criancinhas inocentes. Cantigas de roda, alegrando as meninas sonhadoras. As adivinhações, agora também veiculadas pelas radiodifusoras. Os papagaios, enfeitando os céus do mês de agosto, quando São Lourenço, basta assobiar, abre todas as portas do vento. As bolas de gude, nos recreios das escolas e nas praças dos subúrbios, onde ainda se brinca de mania, de pegador, de dono da calçada, e de tantos outros jogos que continuam desafiando os desenhos animados da televisão e a tecnologia dos brinquedos plasticamente massificados.
Acontece que o recifense - a criança, o jovem e o adulto - não vive apenas os brinquedos e as danças trazidas pelo português colonizador. Sua criatividade, aprimorada no decorrer dos séculos, fez com que a cidade tivesse, também, seu folclore, à sua maneira, fruto de sua vivência e por força da homogeneidade de sua população.
Por ocasião dos festejos juninos, precisamente na véspera de São João, à noite, em diversos subúrbios do Recife, temos o Acorda Povo, "talvez a derradeira procissão religiosa do Brasil onde ainda se dança", segundo Evandro Rabelo. Também conhecido como Bandeira de São João, Procissão do Galo, Procissão de São João, Bandeira do Galo ou, ainda, Banho de São João, o Acorda Povo sai da casa do juiz (a), onde ficou desde o ano anterior, em seu nicho, na sala de visita ou de jantar, nicho este todo forrado com papel de seda encarnado e branco que são as cores do santo nos terreiros, onde São João corresponde à divindade de Xangô.
Em frente à casa do juiz (a) é acesa a fogueira e foguetes, balões e fogos de artifício enfeitam o céu. Milho assado, canjica, pamonha, pé-de-moleque, vinho, cachaça, guaraná, são servidos aos presentes. Cantam-se a ladainha de São João, o Rosário, uma Salve Rainha de São João e o Bendito de São João. Em seguida, a procissão percorre algumas ruas do subúrbio até a casa do juiz(a), onde a imagem de São João vai ficar até o ano seguinte.
Antigamente o Acorda Povo acabava sempre com um banho de homens e mulheres, no rio, em cujas águas todos deixavam suas mazelas enquanto cantavam:
- "São João foi tomar banho
Com vinte e cinco donzelas.
As donzelas caíram n'água
E São João caiu com elas".
Os pregões são outra manifestação folclórica de muita beleza. Cantados, falados, ou tocados, cada cidade tem os seus pregões. E o Recife, como não poderia deixar de ser, também tem os seus. Entre os pregões antigos temos o do vendedor de pitomba:
- "Ei, piripiripiripiripitomba! Menino chora prá comprar pitomba! Ei, pitomba! "
Outros pregões enchem de melodia a vida e a saudade de muita gente:
- Olhe o rolete ! Rolete é de cana caiana! Quem vai querer?"
- "Eu tenho lã de barriguda prá travesseiro ! "
- "Ostra chegada agora ! Chegada agora... Chegada agora..."
- Mé novo, de engenho ! "
- "Banana prata e maçã madurinha ! "
- "Verdureiro ! "
- "Macaxeira ! Macaxeira rosa"
- "Macaxeira! Macaxeira Bahia, cozinha n'água fria ! "
E o vassoureiro? Quem, com mais de trinta anos de idade não se lembra da figura folclórica do vassoureiro, com seus dois balaios pendentes de um pedaço de caibro sobre os ombros, balaios cheios das mercadorias constantes de seu pregão melodioso:
- "Vassoura, abano, espanador, bacia de lavar prato, regador, colher de pau, esteira d'Angola, rapa-coco, grelha ! Olha o vassoureiro ! Vai querer hoje?"
E estes outros, também bonitos e saudosos, como:
-"Doce gelado! "
- "Sorvete! É de coco e de maracujá!"
É bom explicar que doce gelado era como se denominava o picolé de hoje, logo quando apareceu, Era redondo e não tinha o formato dos picolés de agora.
Os pregões atuais, quase todos, com exceção de alguns, são tocados como a trombeta do vendedor de picolé, a sineta do pipoqueiro, a gaitinha do vendedor de cuscuz e do amolador de tesouras, a sineta do caminhão de gás, etc. Entre as exceções, lembro:
- "Olha o amendoim I Amendoim torradinho ! "
- "Caranguejo! Olha o carangueijo ! "
- "Pirulito ! Olhe o pirulito ! Quem vai querer?"
- "Cavala! Olha a cioba !"
E os mal-assombrados do Recife? Gilberto Freyre registrou, no seu Assombrações do Recife Velho, algumas notas históricas e outras tantas folclóricas em torno do sobrenatural no passado recifense, livro capaz de arrepiar os cabelos, onde vamos encontrar os mal-assombrados mais terríveis da Veneza Americana, como o Boca de Ouro, 0 Barão perseguido pelo Diabo, As luvinhas misteriosas, 0 Visconde encantado, 0 Barão de Escada num lençol manchado de sangue, 0 negro velho que andava em fogo vivo e outros, além do registro das casas mais mal-assombradas do Recife, como 0 sobrado da estrela e 0 sobrado das três mortes.
Ainda hoje passar pela Cruz do Patrão só o faz quem tem muita coragem. Segundo Evandro Rabelo "a Cruz do Patrão ficou na alma do povo como sinônimo de coisa mal-assombrada, lugar para quem tem juizo não passar altas horas da noite, pois corre o risco de encontrar gente do outro mundo no caminho. Poderá ver alma de negro dançando ou o lamento de algum patriota arcabuzado em seu largo. Altas horas da noite aparecem coisas infernais. Almas penadas gemem e choram e uma misteriosa luz se apaga e acende a noite inteira. Barulho de pesadas correntes denunciam visagem. Alma de negro cativo. 0 cabelo de quem assiste a esse espetáculo se levanta, procura as pernas e não acha, quer gritar e a língua engrossa".
No mercado de São José, vamos encontrar o vuco-vuco, lugar onde se vendem ou se trocam ou se compram roupas e sapatos usados. E, nos seus inúmeros compartimentos, são encontrados os remédios populares mais variados, à base de folhas, flores, raízes e frutos de plantas milagrosas que curam ou aplacam os mais variados males, principalmente os considerados como menores. Comidas regionais como buchada, panelada, cozido, mão-de-vaca feijoada, sarapatel, doces os mais populares e diferentes, caldo de cana e um mundo de iguarias de encher a boca d'água de qualquer cristão que esteja com fome. No pátio do Mercado poetas populares vendem seus folhetos, emboladores embolam emboladas, o homem da cobra fala pelos cotovelos vendendo sua mercadoria, ceguinhos; entoam suas tristes canções de quem não vê a luz do dia. Todo um mundo colorido e misterioso como colorida e misteriosa é a alma do povo.
Que dizer dos tipos populares de antigamente? Já fazendo parte da alma da cidade, temos o Papa-Figo (que comia o fígado de crianças para ficar bom de sua morféia), o Cariri, o Doutor Corujinha Maracujá de Gaveta, Bonifácio Barbicha, o Garapa, o Homem da Ostra (vendendo suas ostras e conduzindo sua hidrocele) e tantos outros, tão interessantes como os que ainda hoje percorrem as ruas da cidade vivendo sua leseira, servindo, às vezes, até mesmo de saco de pancadas de pequenos marginais sem caridade, como Ângela Maria (que imita a cantora do mesmo nome), Me dá Mil (um pobre homem que mora em Apipucos e pede às pessoas mil cruzeiros, devolvendo ou mesmo não aceitando caso a pessoa lhe dê mais do que a importância pedida), Perua (tomando seus pileques sem fazer mal a ninguém), Vanusa (que, em Boa Viagem, imita a voz da própria, fazendo, também, demonstrações de caratê e conguefu), Chapéu de Couro (que usa um chapéu de couro e tem o peito coberto de medalhas, tendo até mesmo feito propaganda de um candidato), além de muitos outros que podem ser encontrados perambulando pelas ruas dos subúrbios, merecedores de nossa caridade, do nosso apoio.
Já notaram como algumas ruas recifenses têm nomes curiosos? Rua do Alçapão (Nova Descoberta), Rua do Arame (Estância), Rua da Baixinha (Beberibe), Rua da Bola (Santo Amaro), Rua das Calçadas (Santo Amaro), Rua do Cotovelo (Boa Vista e Casa Amarela), Rua das Creoulas (Graças), Rua do Despacho (Afogados), Rua Deus te Guarde (Afogados), Rua Dragão do Mar (Pina), Rua da Escada (Totó), Avenida Encanta Moça (Pina), Rua Estrela Brilhante (Beberibe), Rua Flor do Sertão (Jordão), Rua do Fogo (São José), Rua do Futuro (Graças), Rua Ilha do Destino (Boa Viagem), Rua das Lágrimas (Casa Amarela), Rua das Moças (Arruda e Casa Amarela), Rua do Poço (Afogados), Rua do Porão (São José), Rua da Roda (Santo Antônio), Rua dos Velhos (Casa Amarela), Rua dos Tijolos (Boa Viagem), além do Beco da Facada, do Córrego da Loura (Beberibe), Rua Queira Deus (Tejipió), Rua Só Nós Dois (Beberibe) e tantas outras que constam da lista telefônica da cidade do Recife.
Não podemos esquecer as manifestações folclóricas próprias do Recife como o pastoril do Velho Barroso, o Mamulengo de Tiridá e, quando chega o Carnaval, o Maracatu Leão Coroado, os caboclinhos, os La Ursas, as troças, o Zé Pereira, 0 Homem da Meia-Noite, 0 Galo da Madrugada, o Vassourinha, o Clube das Pás e muitos outros que enchem as ruas da cidade de gente, de cores, de trevo, de passo, de alegria..
Assim é a riqueza do folclore do Recife.