Em sua casa de Olinda, o folclorista Mário Souto Maior não se limita a preparar o anunciado Dicionário do Palavrão, que muita gente aguarda com impaciência, na expectativa de vir a conhecer espécies outras e vigorosas, com que se enriqueça o repertório tradicional. Procede também ao levantamento de nomes estranhos (alguns chegam a ser palavrão também) de pessoas nascidas no Brasil. Um primeiro resultado da coleta em 21 fontes (guias telefônicos, jornais, etc.) sai agora em folheto sob o título Nomes Próprios Pouco Comuns, e faz a gente pedir: mais.
O nome próprio extravagante é motivo de riso, que faz sofrer seu portador em benefício do fígado alheio, mas sua motivação é sociológica e psicologicamente séria, pelo que entremostra de gostos, idéias e hábitos dos brasileiros. Na hora de colar ao filho uma etiqueta para toda a vida, não só a imaginação se põe a trabalhar. Entram no jogo o espírito religioso, a definição política, a fascinação por supostos heróis do dia, o desejo de transferir ao recém-nascido virtudes e glórias de um modelo prestigioso, pela identidade onomástica. Há um fator de magia inconsciente na operação, muitas vezes com péssimo resultado, porque dando pasto ao ridículo, mas a intenção é pura.
Não podemos simplesmente gozar os nomes pantafaçudos de gente, pois eles convidam a meditar no mistério da criação. Faz-se um filho, mais ou menos conscientemente, mas uma vez nascido (ou mesmo antes) procede-se a um segundo e sutil ato criador, que é o de individualizá-lo por meio de um nome que o marque para sempre – nome que seja um sinal concreto, uma tatuagem indelével na pele de sua vida. Antônio Manso Pacífico Sossegado – um dos componentes da relação de Souto Maior – para mim vale mais do que todos os exuberantes manifestos pacifistas trombeteados pelo mundo afora. Os pais de Antônio quiseram fazer dele a própria encarnação da paz, sem asas de anjo ou de pomba: sujeito que anda na rua sem ruminar agressões nem topar brigas; que não esmague o inseto, não maltrate a planta, não semeie a injustiça. Terá ele obedecido a esta programação ideal? Não importa. Importa o que os pais lhe ofereceram em três adjetivos de boa vontade.
Getúlio Subirá, incluído no Guia dos Telefones da Zona da Mata Mineira de 1967/8, documenta um fervor partidário cuja profecia se confirmou, embora com desfecho trágico: Getúlio Vargas subiu de novo ao Poder, para dele baixar pela auto-imolação. Naída Navinda Navolta Pereira parece exprimir uma ânsia de viagem e um voto de constância assim como Veneza Americana de Recife, inscrita no INPS, revela orgulho paisagístico de bom pernambucano. Os achados de Mário Souto Maior são fartos de sugestividade: Antônio Dodói, Abecê Nogueira, Barrigudinha Seleida, Eclesiaste Cardeal da Costa, Francisco Facada Sargento de Cavalaria, Gilete Queiroga de Castro, D’artagnan Pascal, José Amâncio e Seus Trinta e Nove, Oto Bompeixe de Oliveira, Magnésia Bisurada do Patrocínio. Admita a autenticidade de apelações que correm na boca do povo e são registradas por algum curioso da matéria, temos campo aberto à análise da inventividade, lirismo, crença e humor involuntário de nossa gente.
Ela procura caprichar na escolha de nome para seus herdeiros. É um capital primeiro que lhes reserva, com a mais santa das intenções. Sucede, não raro, que esse capital é negativo, e daí talvez a conveniência de todos os nomes serem provisórios, digamos até 18 anos. Aí, seu detentor (ou vítima) o confirmaria ou trocaria por outro de sua predileção, já agora definitivamente. O homem merece ter, entre seus direitos universalmente proclamados, mas pouco reconhecidos, o de chamar-se como quiser. Como não pode exercê-lo nas primeiras horas de vida, o pai lhe dará rótulo interino. Idéia joão-brandônica, isto é, demasiado sensata para ser incluída em futura reforma do Código Civil. De qualquer maneira, fica lançada, enquanto Mário Souto Maior vai colecionando os impróprios nomes próprios do brasileiro.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Prefácio de Nomes próprios pouco comuns. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1974