Mário Souto Maior e Waldemar Valente organizaram uma Antologia da Poesia Popular de Pernambuco. Trabalho de pesquisadores profissionais, a seleção é altamente representativa de nossa poesia de cordel. Há que distinguir entre o "cordel" e a poesia "oral", como ensina o grande Ramón Menendez y Pidal, assim como entre poesia "popular" e poesia "tradicional". A poesia "tradicional" se confunde com a poesia "oral", cujos autores são quase sempre desconhecidos. Já a poesia "popular" é um gênero mais recente e seus autores registram em folhetos suas criações literárias. Na Espanha, entre os poetas famosos que escreveram romances populares, se encontram o Marquês de Santillana e Góngora.
Na Antologia de Mário Souto Maior e Waldemar Valente, foram incluídos 25 autores, distribuídos pelas 245 páginas do livro editado pela Massangana, a editora da Fundação Joaquim Nabuco. A obra começa com uma narrativa de Antonio Batista Guedes (1880-1918), natural de Bezerros. O poema critica, em termos nitidamente moralistas, os costumes da época. Falecido aos 38 anos, deixou-nos um testemunho daquilo que era mais criticado pela sociedade de seu tempo. Chama de "apreciação", termo aliás bem moderno, a crítica que faz aos costumes e apela para que não se fatiguem, com tal crítica, os leitores de seus versos em redondilho maior. A estrofe usada por ele é a de sete versos. Isso já representa uma dificuldade, pois o nosso romanceiro parece demonstrar maior preferência pela sextilha, a oitava e a décima. O mesmo não ocorre no romanceiro espanhol, cuja forma de expressão preferida é o quarteto assonantado, de acentuada influência na poesia de João Cabral de Melo Neto. No caso de Antônio Batista Guedes, o verso quebrado não é freqüente. Mas há muitos versos quebrados em outros participantes da Antologia. Tal falha também se observa na melhor tradição do verso popular espanhol, especialmente nos romances "antigos" da classificação de Pidal, o que fez o Marquês de Santillana dizer que "los ramances non contaban las silabas con buen orden". Em Antônio Batista Guedes, o primeiro verso é solteiro, rimando entre si os versos segundo, quarto e sétimo. O terceiro é como o primeiro: não rima com nenhum outro.
Logo no segundo poeta da Antologia, Antônio Marinho do Nascimento, a décima faz sua aparição para glosar o mote: "A Natureza tomou/ tudo quanto tinha dado". O autor é de São José do Egito, terra que produziu dois terços dos poetas populares do sertão pernambucano. Antônio Marinho do Nascimento, que dedicou 32 anos à cantoria, dos 53 que viveu. Ë tão admirado em sua terra que há na cidade um bairro com o seu nome além de um busto na praça pública. Como cantador profissional, deixou poucos textos. Acredito que, em tais casos, uma pesquisa na poesia "oral" do sertão poderia revelar outros trabalhos desse poeta, conservados e transmitidos às novas gerações pela memória de seus contemporâneos.
Entre os vivos , lembro aqui João José da Silva, hoje com 67 anos e residindo em Recife. É natural de Vitória de Santo Antão. Sua bibliografia é imensa, como lembram Mário Souto Maior e Waldemar Valente. Dele, foi incluído na Antologia o romance A Condessa Rosa Negra, que assim começa:
Pra meus admiradores
neste livro eu apresento
a história duma noiva
que teve o constrangimento
de ser trocada por outra
na hora do casamento.
Como se vê: a métrica falhou aqui sem nenhuma necessidade. Geralmente, os romances de autores recentes não sofrem alterações quando perdem o seu registro escrito. Mesmo conservados pela tradição oral, as variantes são raríssimas, fato já observado pelo grande Menendez y Pidal. A razão é simples: ninguém se atreve a criar variantes para uma composição contemporânea. No caso dos romances mais antigos, sem registro gráfico, a introdução de variantes é plenamente justificada: um verso esquecido tem de ser substituído por outro. É o que ocorre no Brasil com o Romance do Conde Carlos. Esse Romance chegou ao Brasil vindo da Espanha. Como era conhecido de memória, foi muito alterado em toda a extensão de seu texto. O estudo desse romance se enquadra numa das acepções da literatura comparada. Por isso, não é de interesse apenas dos folcloristas mas também dos professores de literatura de nossas Universidades.
Reunindo em livro esses textos, Mário Souto Maior e Waldemar Valente preservam não só a fidelidade dos textos citados mas também o interesse de todos os que se dedicam ao estudo de nosso romanceiro popular. A partir dessas fontes, outras poderão ser reconhecidas. E isso é de importância para os estudos literários em geral, especialmente no âmbito da literatura comparada, sempre demonstrando o maior interesse pela relação dialética entre o popular e o erudito, como mostrou, na "Revista de Pernambuco", o prof. Ruy dos Santos Pereira, no vigoroso ensaio de abertura do periódico. Um bom exemplo de combinação desses valores é o romance A Pedra do reino, de Ariano Suassuna, onde o erudito e o popular são conceitos indissociáveis de uma mesma estrutura.
LEAL, César. Antologia da poesia popular de Pernambuco. Diario de Pernambuco, Recife, 29/9/1989