Este é um momento espiritual superior que eu poderia ter desejado, mas nunca esperado que me chegasse. Estar presente num livro de Mário Souto Maior, associar meu nome a um trabalho da importância científica deste Dicionário é, sem dúvida, uma honraria que me torna soberbo. Importa dizer que ambos, o autor e eu, não fazemos a apologia do palavrão. Nem ele nem eu gostamos da coisa. Mas o palavrão é um fato da língua ou, talvez melhor, da linguagem cotidiana. Também o médico não gosta das doenças, mas delas trata, por amor do doente e não de suas moléstias e enfermidades. A técnica, ainda das coisas do espírito, é indiferente a seus fins, disse-o um celebrado jurista-filósofo que encheu de brilho uma parte da legislação que nos rege. Só o artista participa subjetivamente da obra que realiza. O cientista trabalha sobre os fatos de sua ciência, a bem dizer impessoalmente. O artista cria. O cientista observa e dá conta do que viu, do que descobriu. O que lhe importa é a verdade ou a veracidade dos resultados, não a sua bondade.
O autor é homem de Ciência e também de Arte. Aqui foi o cientista, não artista. Nenhum matemático é responsável pela soma das parcelas que estão alinhadas no papel debaixo de seus olhos, sob condições de ser a soma exata. A exatidão das parcelas não lhe toca examinar. O que avulta e torna, ao primeiro súbito de vista, um tanto suspeito o trabalho que ora aparece em feitio de livro é o seu título. A lombada de um livro fá-lo apetecível ou repulsivo. E uma grande maioria vê apenas o título. Dar nome a um livro é obra de aturado labor psicológico, como nomear um filho. Um título e um prefácio, por si sós, fazem o bom ou o mau sucesso de um livro. É assim em toda parte. Vivemos das aparências. Vi uma dama entrar afoitamente na livraria e pedir um livro que estava na vitrina, empolgada pelo título. A ela lhe pareceu um saboroso e, talvez, picante romance, quando em verdade, era um austero calhamaço técnico de problemas jurídicos. Estou que o trabalho de Mário Souto Maior ganharia em seus altos objetivos, isto é, seria compulsado, lido e relido, estudado e meditado, por uma ampla maioria de leitores (já não digo estudiosos, porque estes não se preocupam com títulos de livros) se lhe houvesse dado o sabedor e amoroso autor um nome diverso.
Trata-se de um levantamento da gíria, da linguagem especial, ou, talvez, de uma língua especial de minorias; de palavras, expressões e modismos que fazem parte do linguajar do povo. Avalia-se a riqueza espiritual de um povo por sua Língua, por sua linguagem e por seu linguajar, vitral de belezas, de sutilezas, de impertinências, de impudicícias e incontinência verbal. Um livro, como este, é um balanço e um inventário de um aspecto da cultura de nossa gente, do nosso meio e do nosso tempo. Não visou o autor a agradar, mas a expor e mostrar fatos. E o fato é o fato. Gostemos ou não. Um cientista não pode cultivar a hipocrisia diante de sua Ciência. É sempre um indiscreto: vê e fala do que viu. Terá de ser sempre um saco roto, nada guardando, nada ocultando daquilo que, em suas longas e angustiosas vigílias, descobriu. Será sempre um inconfidente, contando aos outros os segredos que seu labor lhe revelou. Aqui, o que seria defeito de comportamento social é qualidade, é virtude amável. Ao homem de Ciência está sempre presente aquilo da Bíblia: clama e não cesses de clamar.
Não se escreve e publica um livro de ciência para o gosto pessoal dos leitores. Escreve-se simplesmente. Publica-se simplesmente. É dever. E quem está obrigado só tem uma coisa a fazer: é desobrigar-se. Contraiu Mário Souto Maior um débito para com todos. Pagou o débito, extinta está sua obrigação. Fez sua prestação e dela todos nos beneficiamos, Éramos seus credores, como o somos de todos os que cultivam a aspérrima seara do saber. Semear. Colher é outra coisa. Quase sempre se esquece o semeador, quando se saboreia o fruto maduro de sua messe. Aquele que põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o reino de Deus. Está na Bíblia. E o reino de Deus não é realmente deste mundo. Poderá, de logo, não ser entendido, mas, alguma hora, será estimado e louvado o autor pela dádiva que nos fez.
Rio de Janeiro, outono de 1973
ROSA, Eliézer. Apresentação do Dicionário do Palavrão e Termos Afins (7a ed.)
Rio de Janeiro: Editora Record, 1998